Conjugação nos ciliados: Aspidisca e Euplotes
Ághata Barreto, Bruno Cosme, Rogério Lima & Saulo Alves
Professor Orientador: Solange Peixinho
Introdução
O fantástico mundo dos protozoários manifesta-se em toda sua magnitude quando conhecemos os seus processos vitais como um todo, sua simplicidade enquanto ser unicelular, assim como sua complexidade, pois contém todos os processos biológicos necessários à manutenção da vida e à evolução para seres mais complexos.
Baseado em pesquisa publicada no artigo sobre conjugação na ordem Hypotrichida ( ROSATI, VERNI & DINI 1998 ), desenvolvemos o tema complementando-o com pesquisas em outras fontes e insights acerca de características evolutivas e morfogenéticas.
Aqui visamos elucidar o processo como um todo utilizando o método do "vôo da águia", partindo do conhecimento mais restrito para o mais abrangente, entendendo o todo como mais do que a soma das partes.
Abordaremos, em linguagem simples e didática, aspectos da dinâmica nuclear, morfologia externa, características ecológicas e peculiaridades inter- e intraespecíficas, tais como divisão macro e micronuclear e a conjugação propriamente dita.
O leitor ainda encontrará um breve esclarecimento esquemático da morfologia do alvo de estudo assim como um pequeno glossário com explicação de termos encontrados neste trabalho.
1. Morfologia
Os organismos pertencentes ao Filo Ciliophora são unicelulares
eucariontes dotados de cílios ou tufos destes (cirros). Os membros da ordem Hypotrichida são achatados com cirros restritos
à porção ventral, tem o peristoma grande e a membranela bem desenvolvida.
Particularmente na família Aspidiscidae encontram-se pequenos cílios (setas)
tácteis ligeiramente móveis na parte dorsal (Fig. 06), e a membranela é pouco
desenvolvida.
é um
organismo pequeno, variando de 30 a 50 µm de comprimento; ovóide, com uma forma
levemente semelhante a uma batata; o lado dorsal (Fig. 02) é convexo e o ventral aplanado
apresentando leves rugosidades; a zona adoral é reduzida ou rudimentar, a membranela
encontrada nesta região é mal desenvolvida; o macronúcleo apresenta-se numa
conformação de ferradura. Neste gênero encontramos
Figura 1. Aspidisca. (Fonte: SLEIGH, M. 1979)
Figura 4: Aspidisca. (Fonte: SLEIGH, M. 1979.)
poucos cirros que são restritos a apenas duas zonas: ventral (7 cirros) e anal (de 5 a 12 cirros).Quanto à evolução morfológica, o ponto de partida das análises é a grande
diversidade da ciliação oral, sendo essa mais importante que a ciliação somática. No decorrer de sua história, os ciliados mais simples que conhecemos são os da ordem Gymnostomatida pois não possuem ciliação composta.
O nosso objeto de estudo está particularmente relacionado com o gênero Aspidisca apesar de apresentarmos um conhecimento mais amplo acerca dos outros gêneros.
Para que o leitor não fique desorientado quanto à classificação, resolvemos colocar o esquema abaixo, que é uma combinação de informações retiradas de RUPPERT & BARNES (1994) e de KUDO (1985).Salientamos que os táxons nas categorias taxinômicas superiores seguem o esquema conservador da Sociedade de Protozoologistas.
2. Processo reprodutivo
Nos ciliados o processo "reprodutivo se dá por meio da conjugação", a qual consiste da união parcial por meio de uma ponte citoplasmática entre dois indivíduos, havendo troca de material genético e, posteriormente a separação dos conjugantes, seguida de divisão por mitose.
2.1. Aspectos gerais da conjugação nos ciliados
Durante a pré-conjugação ocorre o matting types ( = tipo de emparelhamento: só conjugam quando pertencem a diferentes tipos de emparelhamento; ver explicação mais adiante), os conjugantes aproximam-se e unem-se formando a ponte citoplasmática, os conjugante emitem o seu micronúcleo gamético (n), este é recebido pelos destinatários que, após algumas horas se separam. O micronúcleo recebido funde-se ao micronúcleo estacionário (n) formando um único núcleo (2n).Horas depois segue-se a divisão mitótica.
2.2. Divisão Macronuclear
O macronúcleo, também chamado de núcleo
vegetativo, tem como função primordial controlar os processo metabólicos, exceto os que
envolvem a reprodução e a conjugação da célula, tendo em vista que este desaparece
durante ou após a conjugação. A divisão deste núcleo é feita de várias formas por
isso optamos por enfatizar a divisão no Euplotes, no Aspidisca e no Urostyla
(Fig. 04) por se configurarem
muito parecidas entre si (Euplotes e Aspidisca) ou muito diferente (Urostyla).
2.2.1. Euplotes Vs. Aspidisca
O início do processo de divisão macronuclear no Euplotes se
dá com a dilatação em espessura do macronúcleo (Fig. 03) e a constricção de suas extremidades (no sentido
de se juntarem), para assumir uma conformação redonda (deixando a forma de ferradura
para parecer uma ameba). Durante este período (período de encurtamento) aparecem de 1 a
3 zonas chamadas "bandas de reconstrução" (Fig. 03) cuja função
Figura 4: Urostyla. (Fonte: SLEIGH, M. 1979)
é migrar para o centro pressionando a parte central, onde elas se encontram, e o macronúcleo toma sua forma ovóide, então segue-se uma divisão simples (a qual não apresenta cromossomos, apenas cromatina).
Figura 3: Divisão do macronúcleo.(Fonte: KUDO, 1985)
No Aspidisca o processo é muito parecido, contudo as bandas de reconstrução não aparecem nas extremidades e sim no centro; esta divide-se em 2 sendo que cada uma das metades migrará para as pontas, assim.ao final do processo, como no Euplotes, o macronúcleo terá uma forma ovóide e se dividirá.
2.2.2. Urostyla
Completamente diferente do Euplotes e do Aspidisca, o macronúcleo está dividido em 100 ou mais partes e distribuído por todo o citoplasma. O processo da divisão neste caso inicia-se com a migração dos corpúsculos para o interior da carioteca onde se fundem e ocorre a divisão.
Nós, durante o período de tratamento das informações captadas, fomos chamados a atenção acerca deste comportamento peculiar do Urostyla (dividir seu macronúcleo pelo citoplasma). Como este organismo é um tanto desenvolvido (esticado - Fig. 04) foi um importante passo evolutivo espalhar seu macronúcleo pois assim as proteínas seriam sintetizadas mais próximas da sua zona de ação, então o seu metabolismo seria mais rápido do que se fosse necessário migrar de um núcleo central para os extremos da célula.
2.3. Divisão Micronuclear
O micronúcleo é o responsável pelo processo de divisão, ele divide-se reducionalmente ou seja, ao final do processo ele terá um número n de ADN.
Antes do processo de conjugação o micronúcleo divide-se dando origem a 4 cópias sendo que destas, 3 degeneram e o sobrevivente volta a se dividir originando outros 2 micronúcleos, sendo um estacionário e outro gamético.
Durante o processo de conjugação o micronúcleo gamético é análogo ao gameta masculino nos metazoários e o estacionário ao feminino.
Existe ainda ciliados que não apresentam micronúcleo por algum erro no processo de reprodução; a ausência deste núcleo não compromete a vida do indivíduo, mas alguns pesquisadores afirmam que a vitalidade e a resistência a algumas drogas como a proactiomicina diminui. É importante ressaltar que o micronúcleo é o responsável pela formação do macronúcleo.
2.4. Aspectos Gerais da Conjugação No Aspidisca e Euplotes
A conjugação é um processo de eventos responsáveis pela variabilidade genética. O processo como um todo pode ser dividido em 3 fases: pré-conjugação, conjugação propriamente dita e pós-conjugação.
2.4.1. Pré-conjugação
Durante esta fase, segue-se a divisão micronuclear originando os micronúcleos gaméticos e estacionários como já foi explanado anteriormente. Os indivíduos reúnem-se em depressões ou fossas e ficam relativamente quietos por aproximadamente 1h. Nos poucos movimentos executados, os indivíduos "tocam-se" como se procurassem reconhecer um ao outro, isto é o matting types. Acreditamos que este processo envolve reconhecimento químico por parte do glicocálix cujo principal componente neste caso é o n-acetil-neuroamínico, pois este têm a função primária de reconhecimento das moléculas no ambiente. Isto vem a ser muito importante evolutivamente, pois o fato de que os conjugantes fazem uma "pré-seleção" de seus parceiros, aponta para uma seletividade genética, talvez à procura de indivíduos perfeitos.
Morfologicamente a Borda Peristomial eleva-se, isso demonstra um conjugante potencialmente disposto a entrar no enlace conjugativo. Ainda nesta fase os alvéolos presentes no córtex são rompidos por conta do movimento de levantamento peristomial. Devemos salientar que os gêneros Aspidisca e Euplotes têm o corpo inflexível.
2.4.2. Conjugação Propriamente Dita
Com as bordas
peristomiais (Fig. 05) erguidas, os conjugantes conformam
-se paralelamente unindo seus citoplasmas pela
"ponte", daí em diante começa a ocorrer a troca de micronúcleos gaméticos.
Após algum tempo, um dos conjugantes, que chamaremos de B, gira em 180º ficando assim
com seu lado ventral (Fig. 05) sobreposto (Fig. 07) ao lado dorsal (Fig. 06) do conjugante
que chamaremos de A, por conta disso a zona de fusão (ponte citoplasmática) estica-se. O
conjugante B é o responsável pela doação de mais da metade do material citoplasmático
e da membrana, na (Fig 07) pode-se ter uma visão geral da
Figuras 5 e 6: Região ventral do Euplotes. (Fonte: ROSATI, VERNI & DINI.1998).
conjugação. Segue-se então, após 12h de acoplamento, a
separação.Os conjugantes estão firmemente presos neste período e vária mudanças
morfológicas ocorrem: um novo jogo de estruturas ciliais ventrais aparecem (com exceção da
ciliação oral). São formados novos cirros que aparecem em um campo
separado da zona oral e estes migram em direção à parte extrema anterior da célula,
maturando no decorrer do caminho. Os cirros novos e velhos coexistem por um tempo até que
os antigos são reabsorvidos completamente. O mesmo processo ocorre com os cirros
frontais e transversais e as organelas ciliares.
Figura 7: Visão dos conjugante durante o processo. (Fonte: ROSATI, VERNI & DINI, 1998).
2.4.3. Pós-Conjugação
Após o longo período de conjugação, os parceiros separam-se, o conjugante B recolhe a ponte citoplasmática reconstituindo seu corpo ao formato original. O micronúcleo entra num estágio de duplicação para assumir seu número gamético diplóide (2n).
Pedimos mais atenção nesta parte do trabalho para que o leitor perceba a inexistência de descendentes (células filhas) ao final do processo conjugativo; por esta razão nós não concordamos com os autores que definem a conjugação como sendo um método de reprodução, entendemos que ela seja "apenas" um dos eventos do processo reprodutivo.
Após um período de 55h, o organismo Aspidisca
entra no processo de divisão que resulta em 2 células filhas. A divisão é uma mitose
transversal, como mostra a figura 8 , assim termina o complexo processo da divisão destes fantásticos e
empolgantes seres aparentemente simples.
2.5. Conjugação entre amicronucleados e micronucleados
Existe um fenômeno conjugativo bastante interessante e curioso: Alguns pesquisadores ao logo da história Protozoológica reportaram a conjugação entre um micronucleado (chamaremos de X) e um amicronucleado (chamaremos de Y).
O processo tem início com a divisão micronuclear, no indivíduo normal (X), o micronúcleo(2n) divide-se três vezes, um dos pronúcleos migra para o conjugante Y. Em ambos os indivíduos
Figura 8: Divisão por cissiparidade: (Fonte: KUDO, 1985)
ocorrem algumas modificações para que o pronúcleo(n) assuma seu número genético normal (diploíde, 2n), o amicronucleado passa a ser micronucleado. Sucedendo após algum tempo uma divisão do protozoário por mitose.
2.6. Reprodução Sexuada ou Assexuada?
Atualmente, segundo as bibliografias mais utilizadas, o processo de conjugação é caracterizado como sendo uma reprodução sexuada. Nós, em empolgantes discussões com nossos orientadores e com base nas nossas pesquisas, entendemos a conjugação como sendo um evento do processo de reprodução assexuada. Um argumento largamente utilizado para defender a conjugação como uma reprodução sexuada é a troca de material cromossômico permitindo a variabilidade genética, mas nós não entendemos esse fato como de grande relevância (ou com relevância suficiente para caracteriza-lo), pois algumas bactérias trocam o ADN circular (plasmídio), o que também promove a variabilidade genética, e não por isso o caracterizamos como tendo reprodução sexuada. Outro mecanismo de variabilidade genética que ocorre nas bactérias é a mutação, propicia à diferença genética entre célula mãe e célula filha, e ainda assim a reprodução bacteriana não é caracterizada como sendo sexuada.
Acreditamos que a troca de plasmídios pelas bactérias é a precursora da conjugação e esta sendo a matriz da reprodução sexuada dos metazoários que, surgiu após muitas tentativas e erros ao longo dos bilhões de anos da evolução dos sistemas biológicas.
3. Conclusão
Como dissemos na introdução, os protozoários realmente são seres interessantes e, ao final do nosso trabalho, constatamos quanta vida há onde a maioria de nós olha e não vê nada; como num córrego, mesmo que poluído, ou na areia da praia, onde podemos encontrar o Aspidisca.
É surpreendente descobrir que os ciliados escolhem seus parceiros, têm um sistema de variabilidade genética bastante peculiar, se locomovem utilizando estruturas tão pequenas, os cirros ou cílios, e está presente em praticamente todos os ambientes do planeta.
A discussão que nós fizemos sobre se a conjugação é sexuada ou assexuada foi com o intuito de promover um debate inteligente entre os leitores, nós e nossos orientadores. Muitos outros assuntos polêmicos habitam a esfera "Protozoa", como a sistemática, a qual é motivo de intensos debates, contudo nós não achamos interessante abrir um tópico para tantas polêmicas já que fugiríamos do nosso objetivo, o de expor a conjugação no Aspidisca e no Euplotes da forma mais abrangente possível.
Temos certeza que o leitor deste trabalho absorverá um pouco de conhecimento e, para aqueles que não tinham o menor contato com o mundo dos protozoários, esperamos que ache-o interessante e que não pare só por aqui.
Para finalizar, escolhemos uma poesia de Ricardo Reis (Fernando Pessoa) que, expressa muito bem a nossa opinião sobre os protozoários; sentimos que cada processo executado por esses organismos é assistido por toda a sua estrutura, todo ele trabalha em função daquele momento para que, ao final do processo, tudo tenha ocorrido de forma mágica, espetacular, fantástica e perfeita.
"Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és no mínimo que fazes"
Ricardo Reis - Fernando Pessoa
Sem dúvidas, a ação de um protozoário é amparada por milênios de evolução e por todo o ser.
Agradecimento
Pelas informações fornecidas, agradecemos à Professora LUZIMAR FERNANDEZ, responsável pela disciplina Bioquímica IV no Instituto de Ciências da Saúde (ICS) da UFBA.
4. Fontes de Consulta
BARNES, R. S. K., CALOW, P., OLIVE, P. J. W. Os Invertebrados: uma nova síntese. São Paulo: Atheneu, 1995. 488p. il.
KUDO, R. R. Protozoologia. Traducido por Aristeo Acosta Carreon. Mexico: Continental, 1985. 905 p. il.
LINS, A. Noções de protozoologia. Rio de Janeiro: Scientífica, 19-?. 367p. il.
RUPPERT, E.E.; BARNES, R.D. Invertebrate Zoology. 6.ed.USA:Saunders College Publ.1994.1056p. il
ROSATI,G., VERNI, F. & DINI, F. Mating by conjugation in two species of the genus Aspidisca (Ciliata, Hypotrichida): an electron microscopic. Zoomorphology, v. 118, p. 1-12. 1998.
SLEIGH, M. Biologia de los Protozoos. Traduzido por Dimas Fernández-Galiano.Madrid: H. Blume, 1979. 399 p. Cap. 11, p. 307-352: Ecologia de los Protozoos.
Glossário